domingo, 22 de julho de 2012

carta aos pais


O câncer roubou meus pais. Algumas palavras escritas em uma página ou duas tornaram-se, de fato, a sentença de morte na qual eu relutei a pensar após enterrar seus corpos. Hoje, eu não sei se fiz as coisas de forma inversa; talvez sim. Ali, em caixões escuros, ladeados de flores e homenagens de estranhos, estavam um amontoado de células anormais que modificaram muito mais que um cérebro ou um seio, elas marcaram os dias e suas horas em meu corpo, dias e horas de sofrimento e término e funerais e finalmente, um adeus. 

Eu sinto falta e apenas a sinto. Sinto a ausência de cada detalhe inerente a sua existência. É um cheiro que permanece nas roupas, é uma voz que já não escuto, um telefone que não toca e a sensação de segurança que me escapa entre crises e outras crises de ansiedade. Minha memória começa então a falhar e eu não posso mais dizer que me recordo claramente de cada minuciosidade, de cada fração, de cada som. Estaria eu me desviando do propósito antropológico de carregar a vida de meus pais para além de minha própria? De meus herdeiros? De meus sucessores? Estaria eu me esquecendo deles?

Em terapia, eu disse, "sou Alice, a Alice de Lewis Carroll, a Alice que está perdida, a Alice que sempre teve alguém para lhe dizer aonde ir e o que fazer e que agora que não tem mais isso, não sabe bem que caminho tomar, eu sou aquela Alice e eu não sei mais quem sou..." e continuei, "sou também o Chestburster, sou o alien preso no corpo hospedeiro, à espera de alguma coisa que me faça sentir, à espera... de algo que simplesmente vá abrir minha mente da mesma maneira que o alien abrirá minha caixa torácica e pronto, estarei livre. Eu sou Alice, mas também sou o Alien e não sei bem o que fazer para sair desse ponto." 

Continuo com uma noção de que nunca realmente saberei como sair deste meu paradigma, sinto-me estúpida e infeliz, sem propósitos ou idéias que acalmem meu espírito. Fui liquefeita em lágrimas, pílulas, notas e paragráfos acerca a morte e a vida e o que eu entendo disto. Algo aperta meus pulmões, algo mancha minhas paredes, algo, sempre algo, está disposto a me destruir em questionamentos.

Meus pais, vocês me quebraram, vocês me mataram com um divórcio, uma falência múltipla de orgãos, uma parada cardiorespiratória. Eu perco partes de mim a cada nova versão de morte que minha mente dispara aos gritos em minha direção. Estamos em fragmentos e em cada um, eu lhes pergunto: De que lhe adiantou lutar, mãe? De que lhe adiantou a rendição, pai? Estamos fadados a ruína de nossas vidas, fomos marcados por uma doença estranha, sádica, desgraçada, imoral. Oh, aqueles últimos dias, o quanto eu aprendi sobre a vida naqueles últimos dias. Quantos abraços vazios e palavras vazias e vidas vazias e amargas e patéticas, quantos, quantos eu recebi?

Nietzsche ou Proust ou alguém que não me importa agora, disse que a vida se encarregaria de transformar meu sofrimento e desespero em crescimento mental; bem, eu espero que isso ocorra, realmente espero. Como numa espécie de compensação bizarra do universo. Você me tirou algo importante, então me dê algo importante em troca, seu maldito, algo que eu eu possa carregar comigo. Compreendo agora que se a morte é esquisita e aterrorizante, então, a vida é ainda mais. A vida é praticamente desastrosa e iluminada, uma ambiguidade ilusória que não posso definir. Tenho medo de continuar, tenho medo de estar viva, tenho medo de desenvolver um câncer que um dia também irá me matar, tenho pavor de me tornar uma suicida, unicamente pelo fato de que não aguento estar aqui com estas amarras criadas por mim e meus fantasmas.  

Minha mente nunca funcionou de uma maneira convencional e vocês sabiam disto; eu nunca tive amigos verdadeiros nem relações duradouras, pois eu não consigo as manter e vocês sabiam! Passei boa parte da minha vida fazendo terapia, se isso veio da minha infância, não sei; se veio da minha adolescência, não sei. Se a responsável por isto sou eu, não sei; se os responsáveis foram vocês, não sei. Não sei o que sou, não sei o que faço, algo me modificou, a morte mudou minha estrutura e eu estou caindo, uma tragédia em queda livre, desta vez, com a certeza de que não existe nada que me salve.

Ainda sou uma menina, aquela garotinha trancada em um banheiro chorando por uma traição e que precisa desesperadamente do amor dos pais. Sou a desgraça de uma heremita que precisa agora estar sozinha; sou uma erudita que precisa pensar sem hesitação, eu sou quem não quero ser, pois me dói ser assim. Estou presa numa noção de que não posso me tornar outra pessoa devido ao argumento de que preciso trilhar por essa estrada para alcançar algo em que não acredito mais. Minha terapeuta diz que isso é normal, diz que não sou um alien, diz que acredita em mim, talvez ela seja a única.

Vocês foram ótimos pais e eu percebo isso agora. Não importa quantos erros cometeram ao longo da vida, foram apenas erros, não posso de forma alguma tentar julgar suas decisões, acima de tudo porque o maior erro ainda está em mim. Eram realmente ótimos pais, eu é que não sou a filha ideal. Sou o protótipo que deu defeito. Eu frustei deliberadamente cada sonho ou aspiração que tinham em relação a mim. Eu me sentia pressionada a seguir um caminho, optei pela imposição, pela ideologia de um juventude que não me pertence; ironicamente, agora que o caminho traçado não está mais sendo empurrado garganta abaixo, eu me perdi dentro da minha própria idéia de "eu".

Ainda tinha 20 anos quando os perdi e de certa, assim o terei para sempre. Nunca mais sairei daquela sala de hospital, nunca mais sairei daqueles cemitérios, nunca mais deixarei aqueles últimos dias. O que foi enterrado ali, é um pedaço meu, uma parte minha que não voltará, que não nascerá, que não sobreviverá. Talvez estejamos todos mortos e condenados a esta ilusão de estarmos vivos, o quão poético isto seria.

O tempo parece-me estagnado e furtivo. Ambivalente. Estou atrelada em um relógio que corre as horas, mas não sinto o efeito do tempo. Apenas tento me manter na superfície, zona limite de uma insanidade. Sem muita inspiração para qualquer coisa que seja, sem muita disposição para o cotidiano, sem tendências ou rotina; apenas escrevo e respiro e penso e imagino, escolhendo inalar o meu próprio veneno. E sonho, diabos, eu sonho por longos períodos como se isso fosse me salvar de um paradoxo em meu próprio destino. Escrevo para não sofrer mais, escrevo para continuar viva, dia atrás de dia, cada hora por vez, porque não quero morrer, não ainda, porque preciso provar alguma coisa nem que seja para mim mesma, porque sou Alice, aquela Alice que precisa acordar do sonho, porque sou o Alien, em estado vegetativo, que está à espera de alguma coisa que me liberte, porque sou quem sou, mesmo sem saber ainda.


Um comentário:

  1. Nunca mais sairei daquela sala de hospital, nunca mais sairei daqueles cemitérios, nunca mais deixarei aqueles últimos dias. (2)

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